conforme calha ou não calha,
podendo às vezes dizer o que penso,
e outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
vou escrevendo os meus versos sem querer,
como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,
como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse
como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
e não precisar dum corredor
do pensamento para as palavras.
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza,
nem sequer como um homem,
mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
caindo aqui, levantando-me acolá ,
mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
perfeitamente sabedor e sem que não veja
que são cinco horas do amanhecer
e que o Sol, que ainda não mostrou a cabeça
por cima do muro do horizonte,
ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
agarrando o cimo do muro
do horizonte cheio de montes baixos.
(Alberto Caeiro)
Em “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
Procuro dizer o que sinto
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