A literatura e a vida

A literatura e a vida

Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-se, que extravasa toda a matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer, uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrevermos, devimos-mulher, devimos-animal ou vegetal, devimos-molécula até devir-imperceptível.

A doença não é processo, mas paragem do processo, como no "caso Nietzsche". E também o escritor como tal não é doente, mas médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura surge então como uma tarefa de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma grande saúde, mas usufrui de uma irresistível pequena saúde que vem daquilo que viu e escutou, das coisas demasiado grandes para ele, demasiado fortes para ele, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, e que lhe dá, no entanto, devires que uma grande saúde dominante tornaria impossíveis.

A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Pertence à função fabuladora inventar um povo. Fim último da literatura, distinguir no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, quer dizer, uma possibilidade de vida. Escrever para esse povo que falta.

Criação sintática, estilo, é este o devir da língua: não há criação de palavras, não há neologismos que tenham valor fora dos efeitos de sintaxe em que se desenvolvem. A literatura apresenta dois aspectos, na medida em que ela opera uma decomposição ou uma destruição da língua materna, mas também opera a invenção de uma nova língua na língua, por criação de sintaxe. "A única maneira de defender a língua é atacá-la. Cada escritor é obrigado a fazer sua língua".

Para escrever, talvez seja necessário que a língua materna seja odiosa, mas de maneira tal que uma criação sintática trace aí uma espécie de língua estrangeira, e que a linguagem toda inteira revele o seu lado de fora, para além de toda a sintaxe. Escrever é também devir outra coisa diferente de um escritor.


Fragmentos do texto de Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês.
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A literatura e a vida A literatura e a vida Revisado by tautonomia em 12:16:00 Avaliação: 5
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